Noite da Alma - Booktrailer

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

CONTO: Guardião

Guardião




O mundo que me rodeia é estranhamente silencioso.
O meu olhar, absorto, encontra-se fixo numa simples sanduíche de pão de forma com manteiga de amendoim crocante, compota de morango e alface: a minha sanduíche preferida e, como é lógico pela estranheza do conjunto dos ingredientes, um segredo bem guardado.
- Li! Também vens, não vens?
Olho em meu redor. Os rostos que agora me observam, com expressões expectantes e interessadas, são me conhecidos e familiares mas, mesmo assim, sinto-me levemente perdida.
- Ir…?! Onde?
- Ao café, depois das aulas! - responde-me uma voz impaciente, como se tivesse acabado de me informar de algo que era minha obrigação saber, e uma mão quente e pesada pousa sobre o meu ombro, sobressaltando-me.
- É claro que ela vai! - responde uma voz quente e calorosa, a qual agradeço mentalmente. De todos os rostos que me rodeiam, este é o que me é mais querido. Vera é uma verdadeira amiga do peito. E a conversa prossegue, as palavras alegres e excitadas das minhas colegas vibrando-me nos ouvidos, deixando-me confusa.
- Será que ele também vem?
- Não sei porque não há-de vir. O Marcus e os outros já confirmaram.
- Ah! Só espero que tenhas razão! E se ele calhar sentado ao meu lado?! Só de pensar fico toda arrepiada!
- Eu acho que era capaz de desmaiar!
- Ele tem de vir! - tornou outra voz esperançada e, num movimento de cabeça que sacudiu diversas madeixas de caracóis alourados, olhos verdes e brilhantes de ansiedade voltam a fixar-se sobre a minha pessoa. - Li! Tens de o arrastar! Custe o que custar!
Pestanejo repetidamente e o súbito silêncio que me rodeia deixa-me ainda mais confusa. Observo os rostos ansiosos e expectantes das raparigas que me rodeiam e franzo a testa sem compreender.
- Arrastar… quem? - questiono inocentemente, e expressões de desagrado e desprezo substituem as que até ainda há pouco me observavam com esperança.
- Nem sei para que é que perdemos tempo com ela!
- Irra que é mesmo idiota!
- Se não é, imita muito bem.
- Egoísta! É o que ela é!
E, por entre comentários do género, vejo-me subitamente abandonada, sentada à mesa do refeitório, onde o burburinho constante é testemunha mais do que suficiente de que nos encontramos na hora do almoço.
Vera suspira pesadamente e deixa-se sentar na cadeira ao meu lado. Fito-a numa questão silenciosa, forçando o cérebro de modo a tentar compreender o que acaba de acontecer, e ela volta a suspirar.
- Às vezes, Li, és mesmo insensível - comenta num tom exasperado e, embora saiba que ela tem razão, sinto-me ofendida com a sua crítica.
- Porquê? O que é que eu fiz?
Vera dirige-me um olhar severo mas, perante a minha expressão de incompreensão, desiste de me castigar.
- Nada… suponho. Mas logo agora que a tua fama estava a melhorar é que resolves desagradá-las… Enfim, sempre soube que não tinhas nascido para ser popular. Mas pensei que este ano talvez pudesses deixar de ser a coitada da escola. - Amuei, cruzando os braços, e Vera respirou fundo, passando uma mão carinhosa pelos meus cabelos. - Seja como for, Li, se estás zangada com ele o melhor é fazeres as pazes. Não não me parece que sejas pessoa de guardar rancor. Vai acabar por te corroer por dentro.- declarou num tom suave e solícito que, uma vez mais, não compreendi.
Contudo, quando me voltei para a questionar, o toque soou estridentemente, silenciando os ruídos do mundo e, instantes depois, juntávamo-nos à torrente estudantil que entupia os corredores e regressávamos à sala de aula.
Fugi mal tocou para a saída. Fugi inclusive de Vera. Não queria ir a café nenhum. Muito menos para receber olhares e expressões de desprezo, ou comentários desagradáveis. Aliás, o que é que as levara a convidarem-me em primeiro lugar? Nunca pertencera ao seu grupo. Tudo o que desejava era passar despercebida e que me deixassem em paz, de forma a que a minha vida académica pudesse terminar tal como começara: de modo incógnito e pacífico. De qualquer forma, naquele momento, não me sentia capaz de fingir ser quem não era. Não quando carregava o peso de um segredo assustador como aquele que, desde o dia anterior, andava às reboletas na minha cabeça.
Foi com receio que abri a porta de casa, e com mais receio ainda que me dirigi ao meu quarto. Abri a porta devagar, silenciosamente, e espreitei antes de entrar. O suspiro que me deixou os lábios foi de profundo alívio. Estava tudo na mesma, notei… Desta vez nada fora mudado.
Pousei a mala da escola em cima da secretária e o meu olhar recaiu sobre a cama que a minha irmã ocupara, antes entrar para a Universidade. O arrepio que me percorreu deixou-me nervosa e decidi ignorar aquela parte do quarto. Entretive-me a tirar os livros da mala e a preparar-me para fazer os deveres de casa… Não pensaria mais naquele assunto. Fingiria não saber de nada! Cumpriria a minha rotina diária como sempre acontecia e, quando os meus pais chegassem, já teria feito os trabalhos de casa e posto a mesa para o jantar.
Os meus pensamentos e intenções fragmentaram-se de repente quando dei de caras com a prova irrefutável de que algo de estranho e claramente errado estava a acontecer. No fundo da minha mala, a sanduíche de manteiga de amendoim e compota de morango observava-me ameaçadoramente.
Fechei a mala de imediato, o coração batendo-me desenfreado contra o peito. Tivera esperanças de a ter imaginado! Porque não fora eu quem a pusera ali dentro! Não fora eu quem a preparara! E, juntamente com todos os outros estranhos acontecimentos que ultimamente me rodeavam, aquela era apenas mais uma prova. Só podia concluir o inevitável: O meu quarto estava assombrado! Eu estava assombrada!
Passei uma mão trémula e húmida pelo rosto.
No dia anterior, a meio da noite, acordara com o som de passos, e depois a luz do candeeiro, que ficava do outro lado do quarto, fora subitamente acesa! Encolhera-me por entre os lençóis, puxando-os até às orelhas. Fechara os olhos com força e desejara com fervor ser capaz de deixar de existir, por instantes. Os passos tinham-se aproximado da minha cama e quase podia jurar que algo me tocara, ao de leve. E depois, naquela manhã, quando abrira a mala para tirar o caderno referente à aula do primeiro tempo, encontrara a sanduíche, feita tal como eu gostava; um segredo acerca do qual só a minha mãe tinha conhecimento.
O toque do telemóvel assustou-me e procurei-o nervosamente, por entre os bolsos da mala. O nome de Vera brilhava no ecrã.
- Sim! - exclamei, ainda sob sobressalto, e os ruídos de fundo característicos de um local público chegaram-me do outro lado da linha.
- Li! Onde raio é que estás quando devias estar aqui?? Está cá toda a gente! Mexe-me esse rabo e põe-te aqui imediatamente! - ordenou-me num tom imperial e, logo a seguir, desligou.
Por momentos ainda fiquei pendurada no pequeno telemóvel, escutando o som intermitente da linha que caíra. Depois enfiei à pressa a carteira e as chaves dentro da mala e quase corri para fora do quarto. Qualquer coisa menos ficar ali, sozinha!, pensei com o coração a bater-me na garganta. E, instantes depois, estava de novo na rua, encolhendo-me contra o vento frio que soprava. Imediatamente, senti-me mais segura, embora soubesse que, mais tarde ou mais cedo, teria de regressar ao quarto assombrado.
Quando cheguei ao café do costume espreitei através da montra, timidamente. O grupo formado pelos meus colegas distinguia-se à distância e as suas vozes alegres ouviam-se mesmo na rua. Com um suspiro empurrei a porta de vidro, cujo guizo anunciou imediatamente a minha presença, e uma rapariga forçou um sorriso, dando-me as boas vindas. O mais certo era estar farta de nós e das nossas algazarras, e ocultar algures dentro de si o desejo profundo de nos ver pelas costas. Mas trabalho é trabalho, ou pelo menos era o que o meu pai nos dizia constantemente, e é o trabalho que nos põe o pão na mesa.
Vera avistou-me rapidamente e acenou-me com entusiasmo. Fiquei imediatamente agradecida pela sua presença e pelo apoio que ela implicava. Estava bem ciente de que não pertencia àquele mundo e, como qualquer extraterrestre, temia as represálias dos seres nativos que o habitavam.
Com um ‘boa tarde’ sumido, deslizei para o banco a seu lado e suspirei de alívio quando ninguém pareceu ter-me escutado.
Ali, entre chávenas de café e fatias de bolo caseiro, rapazes e raparigas da minha idade conviviam alegremente, partilhando os seus mundos que, ao contrário do meu, encaixavam na perfeição uns com os outros. Reconheci imediatamente o grupo que me tinha abordado, à hora do almoço. Contudo, naquele momento, o foco da sua atenção estava longe de ser alguém tão insignificante como eu. E os rapazes com quem conversavam esforçavam-se arduamente por serem dignos do seu interesse.
- Ele veio, já viste? - comentou Vera num sussurro sonhador. - Nem sabes a sorte que tens! E por isso devias ser um bocadinho mais compreensiva com o resto de nós, pobrezinhas, que só o podemos admirar de longe. Nem sabes as invejas que tenho!
O meu olhar vagueou pelas mesas que tinham sido arrastadas e unidas de modo a formar um comprido corredor.
Ele quem…?, de entre tantos eles? E no que é que eu tinha sorte? Para não falar em invejas de quê!?
Vera suspirou e deixei-me deslizar até à ponta do banco, como se desejasse desaparecer por baixo da mesa. Lugares como aquele eram um verdadeiro inferno para pessoas com uma personalidade introvertida como a minha.
- Chama-o, Li! Só para ele olhar para aqui! - pediu-me numa expressão de súplica e, uma vez mais, fitei-a sem compreender.
- De quem é que estás a falar?
A expressão de Vera modificou-se imediatamente e não pude deixar de notar em como se tornara parecida às das minhas colegas, quando me tinham abandonado à mesa do almoço.
- Às vezes és mesmo irritante! Bem sei que estás zangada! Mas isto é infantilidade! Até quando é que vais fingir que ele não existe? - indagou severamente, erguendo o tom de voz e, quando dei conta, um silêncio sepulcral rodeava-me e dezenas de olhos fixavam-se em mim em expressões de acusação e condenação silenciosas.
As faces pegaram-me fogo e senti-me tremer. Sem pensar no que fazia, ergui-me do banco e apertei a mala com força.
- Vocês…! Eu sei lá do que é que vocês estão a falar!! - gritei exasperada, fechando os punhos e os olhos com força, e o nó amargo que me apertou a garganta obrigou-me a fugir daquele lugar.
Foi com dificuldade que contive as lágrimas, o ar frio do fim de tarde ajudando-me a recuperar a calma. Deambulei pelas ruas sentindo-me magoada e triste… e logicamente confusa.
Ao contrário do que planeara, quando regressei a casa os meus pais já tinham chegado. Pedi desculpas pelo atraso e ajudei a minha mãe a pôr a mesa. Pelo menos, enquanto ocupava o cérebro com actividades com aquela, mundanas e diárias, não pensava no resto; nem na vergonha que passara nem no quarto assombrado que me aguardava. Só quando nos sentámos à mesa é que reparei no lugar que fora colocado a mais. O arrepio que me percorreu deixou-me o estômago enrolado e, com urgência, busquei o rosto dos meus pais, à espera que alguém o notasse. O que não aconteceu… Com um suspiro o meu olhar de comiseração voltou-se para a minha mãe. Sabia que ela sentia falta da minha irmã, que saíra de casa no início do ano. Aquele costumava ser o lugar dela… E talvez a minha mãe se tivesse distraído. Ou talvez desejasse apenas recordá-la com aquele gesto.
Quando acabámos de arrumar a louça do jantar já eram perto das dez da noite e, com aquela última tarefa, esgotaram-se as minhas desculpas.
Por instantes ainda me senti tentada a partilhar os meus medos, mas depois… quem é que iria acreditar numa insanidade daquelas? Um quarto assombrado! Sinceramente! Loucura, esquizofrenia, distúrbio de personalidade, isso sim! Seriam o meu veredicto, com toda a certeza. Por isso remeti-me ao silêncio com um suspiro pesado, e praticamente me arrastei até à porta do quarto.
Tal como fizera antes, primeiro espreitei e, ao ver que a dependência estava vazia, entrei pé ante pé. Depois acendi tudo o que eram luzes de candeeiros e enchi-me de coragem para espreitar debaixo das camas e dentro do armário. Como era lógico e seria de esperar, nada! Respirei fundo, aliviada, e resolvi fazer os trabalhos de casa. Pelo menos tinha de concluir os que eram para ser apresentados no dia seguinte, ou teria alguns zeros na caderneta…!
Não sei como adormeci… nem o que é que me despertou.
Sei que de repente me endireitei num salto, como se alguém tivesse gritado o meu nome, e só então compreendi que estivera a dormir. Ainda me encontrava sentada à secretária, a cadeira dura magoando-me o rabo. E a sensação de algo a deslizar-me pelos ombros deixou-me o coração a bater a 1100 à hora! Em câmara lenta obriguei o pescoço enrijecido a mover-se e a rodar, até que o meu olhar ficou preso sobre o que, irrefutavelmente, era o meu roupão de quarto. Alguém me cobrira, concluí com um suspiro. Provavelmente a minha mãe, ao espreitar-me antes de se ir deitar e ao verificar que eu adormecera.
O som de um leve desfolhar deixou-me novamente sob sobressalto e, desta vez, não fui capaz de deixar de tremer. Por instantes deixei-me ficar imóvel, aguardando a constância do silêncio que me garantiria que eu me enganara e imaginara o ruído que tanto me assustara. Mas, para meu desespero, instantes depois ele voltou a repetir-se. Quis gritar e fugir o mais depressa possível, e foi com dificuldade que optei pela opção mais digna e corajosa, obrigando-me a movimentar a cabeça novamente e a olhar na direcção da cama do lado.
A luz do candeeiro estava acesa. A mesma que vira acesa na noite passada. E, por entre o batimento enlouquecido e ensurdecedor do meu coração, os meus olhos incrédulos e aterrorizados viram o que me pareceu ser um vulto, deitado sobre a cama. Engoli em seco, incapaz de deixar de tremer. Só podia estar a enlouquecer! E no entanto, o leve desfolhar repetiu-se, contrariando-me imediatamente.
- Quem és tu…? - A pergunta deixara-me os lábios num tom de voz quebrado e rouco, antes mesmo de me ter consciencializado do que fizera. E, para meu pânico, o vulto pareceu ouvir-me, pelo que se deteve por momentos para, logo a seguir, se voltar na minha direcção.
- Quem sou eu…?! Estás a falar a sério?
Pestanejei repetidamente. Ainda estaria a sonhar? Só podia, concluí! Sonhara que acordara mas na verdade ainda estava a dormir!
Ele voltou a mover-se, deixando-me à beira do pânico, e pareceu-me sentar-se.
- Isso é a única coisa que tens para me dizer? - indagou, num tom agreste e magoado. E, embora a sua voz fosse profunda e quente, senti-me completamente gelada. Um suspirou deixou-lhe os lábios, e pareceu-me que ele se inclinara para a frente, apoiando a cabeça sobre as mãos. - Não sei mais o que fazer… Nunca desejei nada disto… Nunca foi minha intenção…
O seu murmúrio deixou-me um peso amargo sobre o peito e, de alguma forma, essa sensação foi substituindo o terror insano que, até ali, me consumira. E depois, como que por milagre, a luz do candeeiro pareceu tornar-se mais brilhante, e o que fora um vulto disforme ganhou formas físicas e contornos distintos.
Por momentos vi-me incapaz de respirar. Mal podia acreditar no que via! Afinal o vulto era humano! Tinha pernas e braços, e cabeça como eu. Os cabelos negros que lhe deviam dar pelos ombros pendiam-lhe agora para a frente. As suas pernas eram compridas, fazendo com que a cama parecesse baixa. E as calças de ganga ruças que vestia combinavam com o blusão gasto e esgaço. Ao seu lado repousava um livro aberto, as folhas voltadas para baixo, e compreendi a origem do desfolhar que escutara: até eu o perturbar ele estivera a ler aquele livro, agora deixado ao abandono.
Uma inspiração profunda elevou-lhe os ombros largos e depois vi-o erguer a cabeça. A dor que se espelhava no seu rosto belo, quase perfeito, deixou-me perplexa. Os olhos, de um castanho dourado como o âmbar, fitaram-me com pena.
- Talvez o melhor seja deixar-te… Mas não tens com o que te preocupar. De certo que enviarão alguém mais competente para o meu lugar - concluiu num tom amargo que, de certa forma, me magoou. Mesmo assim vi-me incapaz de lhe responder, o meu cérebro demasiado atónito com tudo aquilo e, perante o meu silêncio, ele limitou-se a suspirar pesadamente, e ergueu-se num movimento extraordinariamente belo e harmonioso. Tive de inclinar a cabeça para trás, para continuar a fitá-lo. Ele era demasiado alto. - Lamento toda esta confusão… - disse-me num tom de pena sentido. - E lamento ter-te… assustado tanto. Quem me dera que as coisas pudessem ter acontecido de forma diferente. Mas arrependimentos não levam a nada e por isso… Adeus, Aliana.
O meu nome na sua voz deixou-me sem fôlego. Porque ninguém me chamava assim! Ninguém menos ele! E eu já o ouvira antes, chamar-me daquela forma.
Fitei-o confusa e perdida, sentindo o coração bater-me contra o peito com urgência. Havia qualquer que eu precisava de recordar. Algo tão importante como a minha própria vida. Algo que me fugia constantemente.
O sorriso triste que lhe rasgou os lábios foi como um punhal ardente, cravando-se-me no peito. E depois, inacreditavelmente, ele começou a brilhar, como se a sua pele fosse incandescente.
Ele estava a deixar-me!; constatei. Tal como acabara de me dizer que faria. E eu continuava ali, incapaz de reagir.
A onda de desespero que me preencheu deixou-me a soluçar e de respiração descontrolada. Mesmo incapaz de compreender o que estava a acontecer sabia que ele não podia ir e deixar-me ali, sozinha! Simplesmente não podia! E de repente, por entre a dor sem explicação que me dilacerava o corpo, finalmente soube porquê!
- Hazael!! - gritei, erguendo-me de um salto, e olhei em pânico à minha volta. Penas brancas flutuavam lentamente em direcção ao chão, ocupando o local onde, até há instantes atrás, ele se encontrara. O livro permaneceu sobre a cama. - Hazael!- voltei a chamar, insistindo em olhar ao meu redor, apenas para constatar, uma vez mais, que estava sozinha. Os olhos picaram-me penosamente e lágrimas quentes deslizaram-me pelo rosto.- Não… não me deixes… - murmurei entre soluços e as memórias regressaram-me em flashes, agravando ainda mais o meu choro.
Que idiota que fora! Pior! Que cruel! Que fraca!
Recordei as palavras de Vera.
Não é que eu tivesse estado a fingir que ele não existia. Fora pior ainda! Simplesmente esquecera-me da sua existência! E logo dele, que estivera ali por mim, que me acompanhara desde sempre, desde que eu nascera!
Durante muito tempo ele fora de facto uma presença incógnita, e mal acreditara no que via quando, de repente, ele aparecera à minha frente, há cerca de dois anos atrás. Nesse dia de Verão ele salvara-me de morrer afogada, ou pelo menos fora o que eu julgara, até ele me explicar que a razão pela qual me vira incapaz de regressar à superfície do lago, junto do qual passávamos férias, fora, pura e simplesmente, porque algo me prendera… algo que desejava a minha vida… algo que cobiçava a minha Alma.
De lá para cá habituara-me à sua presença. Habituara-me também ao facto de só eu ser capaz de o ver. Ele estava sempre perto de mim… sempre ao meu lado; partilhando a minha vida; sorrindo suavemente. Sentira-me segura, perto dele. Segura ao ponto de esquecer as ameaças de que ele me falara e contra as quais era seu dever proteger-me. E assim fora, até há cerca de um mês atrás.
De repente, vindo do nada, um grupo de criaturas negras e deformadas invadira a minha casa. Ele tentara destruí-las e proteger-me, enquanto os meus pais, ironicamente, viam televisão, tranquilamente sentados na sala. Mas as terroríficas criaturas tinham sido demasiado numerosas. Quando ele quisera tirar-me de casa recusara-me a fazê-lo sozinha e, por esse motivo, ele dera-se a conhecer ao mundo que me rodeava.
Salvar o meu pai e a minha mãe obrigara-o a assumir um papel real nas nossas vidas e, de um momento para o outro, eu ganhara um primo afastado que, subitamente, passara a morar connosco e a frequentar a minha escola.
Desde então a sua vida passara a ser praticamente humana. E não podia espantar-me ou admirar-me com a quantidade de fãs que ele conquistara logo a partir do primeiro dia de aulas. Afinal, ele era simplesmente perfeito, e não apenas a nível físico. Era simpático e atencioso com todos. Era um aluno exemplar em todas as matérias. E, como se isso não bastasse, a aura que o envolvia era aliciante e magnética. O completo oposto de mim…
Mesmo assim, era ao meu lado que ele permanecia, o que forçara muitas das minhas colegas, que até então me haviam olhado com desprezo, a serem simpáticas e cordiais com a sua priminha. E, quando regressávamos a casa, era em mim que ele confidenciava, questionando o mundo humano em que, por minha causa, fora obrigado a viver.
E de repente, há três dias atrás, tudo mudara outra vez.
Limpei as lágrimas com as costas das mãos e solucei amargamente. Era claro que ele me deixara! Só me espantava que não o tivesse feito mais cedo. Era por minha culpa que ele era obrigado a combater aqueles monstros horríveis. Monstros que acabavam sempre por o ferir, embora os seus ferimentos sarassem rapidamente. E eu abandonara-o, sozinho, quando tudo o que ele fizera fora, uma vez mais, proteger-me. Tudo porque, desta vez, o monstro parecera humano. Fora belo, até. E o seu sangue, quando fora ferido mortalmente, fora vermelho como o meu, espalhando-se por todo o lado e derramando-se sobre mim.
O meu estômago revoltou-se, num espasmo.
Entrara em estado de choque. Estava ciente disso. E por isso o meu cérebro traumatizado apagara da realidade que o rodeava tudo o que o pudesse recordar do que acontecera… Tudo incluindo o meu salvador que, com a pele manchada de vermelho e de brilho feroz no olhar, mais me parecera um terrível assassino.
- Hazael…
Deixara de o ver… e ele estivera ali deitado, a noite passada. E naquele dia, na escola… e no café. Fora para ele que a minha mãe colocara o lugar extra na mesa. Fora a sua mão que eu sentira e que me deixara aterrorizada. Fora ele quem me cobrira com o roupão, quando eu adormecera ali sentada.
Deixei-me cair de joelhos no chão, soluçando amargamente.
Eu não queria outro Anjo da Guarda! Se a minha Alma era assim tão importante como ele me dissera, importante ao ponto de ter sido enviado um Guardião para a proteger, então que esse Guardião fosse ele! Porque era a ele quem eu amava; mesmo coberto de sangue e de expressão assustadora. De que outra forma se justificaria que alguém insensível como eu fosse capaz de chorar daquela forma…?
- Por favor, Deus… trá-lo de volta!
Mas se Deus de facto existe, Ele não escutou a minha súplica…
Hoje estou velha e fraca.
O meu olhar, uma vez mais absorto, encontra-se fixo no padrão floral do edredão da minha cama. O ar arrasta-se em sopros lentos e agrestes pelo meu peito. Sei que a vida que me habita se aproxima do seu termo. Mas vivi bem, concluo em retrospectiva.
Fui jovem e inocente. Encontrei quem me amasse e construí uma família. Filhos e netos deixaram o meu quarto, ainda há pouco. O meu companheiro já partiu, pelo que estou sozinha. Fui médica além fronteiras. Ajudei muitos e salvei umas quantas vidas. E, mesmo depois de reformada, continuei a ajudar os que precisavam. Escrevi dois livros sobre vidas e mundos que muitos de nós desconhecemos, e dei a conhecer ao mundo dito evoluído a existência daqueles que sofrem em silêncio. Não trago pesos no peito, como a melancolia ou arrependimento. E sinto-me pronta para embarcar nesta derradeira viagem.
Resta-me apenas um último desejo: voltar a ver o meu Anjo da Guarda.
Ainda recordo vividamente o meu desespero de juventude, depois de ele me ter abandonado tão de repente. Esperei que, tal como ele dissera, outro fosse enviado para o seu lugar… Mas nada acontecera. Ao longo da minha vida foram vários os acontecimentos estranhos que me sucederam, acontecimentos em que julguei sentir a sua presença. Mas, na verdade, nunca mais voltei a vê-lo, embora me tivesse sentido sempre segura e amparada pela memória da sua existência.
Um suspiro deixa-me os lábios secos e ásperos. O meu coração bate fragilmente e temeroso, como as asas de uma borboleta no seu último voo.
- Hazael… pergunto-me se esta era a vida que esperavas que eu vivesse, quando me disseste que eu tinha uma missão a cumprir e que, por esse motivo, foras enviado para me proteger…
A mão suave e quente que pousa sobre a minha cabeça, como se eu não passasse de uma criança, sobressalta-me por breves instantes mas, logo a seguir, deixa-me um sorriso saudoso sobre os lábios.
- Uma vida perfeita, Aliana. - responde-me uma voz quente mas embargada.
Viro o pescoço para o olhar e sinto os músculos da cara distenderem-se-me no sorriso mais brilhante e verdadeiro que me enfeita o rosto, desde o nascimento do meu neto mais novo.
- Vieste para me enviares nesta nova viagem? - questiono e ele sorri-me tristemente. Continua jovem, belo, maravilhoso… tal como o recordo desde o nosso último encontro. O tempo não teve qualquer peso sobre ele. E, tal como então, uma tristeza profunda habita-lhe o olhar cor de âmbar.
Sinto-me ainda mais velha e cansada, o peso de cada ruga que me marca o rosto subitamente físico e palpável. O tempo passara para mim, mas não para ele.
- Nunca te deixei. Jamais seria capaz de o fazer.
Aceno em sinal de compreensão. Sim, eu sei. Sentira-o sempre ao meu lado, ao longo de todos estes anos.
- Mesmo assim, senti a tua falta - confesso e ele volta a sorrir-me.
- Fiz o que era necessário. Porque era inevitável que te amasse, desde que nasceste. Mas jamais poderia permitir que o meu amor por ti pudesse vir a ser correspondido. A tua existência neste mundo é efémera e passageira, e o teu verdadeiro destino aguarda-te, algures neste Universo. Eu, por outro lado, sou perene e um prisioneiro deste mundo. E assim chega que seja eu a sofrer, neste momento de despedida. Agrada-me saber que não te desviei do teu percurso… e fico feliz ao ver-te sorrir e encarar esta nova viagem com alegria, em vez de pena.
Volto a acenar. Compreendo as suas palavras. E esforço-me por manter o meu sorriso, não querendo que ele se aperceba dos meus verdadeiros sentimentos. Porque eu também o amara… e ainda amava… e amara toda a minha vida.
- E perdoar… perdoaste-me? - indago a medo e a doçura do seu olhar deixa o meu coração cansado a palpitar levemente.
- Nunca houve nada a perdoar. Eu é que devia ter-te protegido melhor. Mas ainda sou relativamente jovem e inexperiente. Não que isso possa servir de desculpa. Jamais devia ter permitido que presenciasses o que aconteceu, naquela noite.
Jovem… sorrio levemente. Sim, ele era jovem. E eu estava velha.
- E tu? O que farás quando eu partir?
- Adormecerei, durante uns tempos. Até a minha Alma sarar e o meu coração esquecer que te amou. E depois voltarei a ser enviado para aqui, para proteger e amar outra Alma Humana. Esse é o destino de todos os Guardiões.
Respiro fundo. Sinto-me cansada... algo temerosa. Peço-lhe a mão com um simples gesto e ele apressa-se a cumprir a minha vontade.
- Hazael… obrigada por me teres protegido. Quem me dera poder levar-te comigo nesta viagem. Tenho a sensação de que verei e conhecerei coisas extraordinárias.
- Quem me dera poder ir contigo… - ecoa ele num suspiro. - Mas os Filhos de Gaea nascem e cessam de existir em Gaea. Não somos entidades eternas e evolutivas, como os Humanos. Mas parte de mim estará sempre contigo. Porque a tua Alma foi tocada pela minha. Assim como a minha Alma foi tocada pela tua. E, nesse aspecto, partilharei da tua eternidade.
Deixo os olhos cansados fecharem e sorrio. Não me sinto mais sozinha. Já não tenho medo. A mão que segura a minha é grande e forte. A mão do ser que mais amo.
Sinto-o debruçar-se sobre mim e lábios quentes e suaves tocam-me a testa. O beijo mais terno que já recebi em toda a minha vida.
- Boa noite, Aliana. Bons sonhos e boa viagem.


Sophia CarPerSanti

1 comentários:

Anónimo disse...

: )

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