Noite da Alma - Booktrailer

domingo, 8 de janeiro de 2012

Testemunho de uma Árvore


Sou Yeluar, a árvore mais velha de uma floresta que outrora existiu. No meu tronco, nas minhas folhas, ficaram marcados todos os dias, todas as semanas, todos os meses, estações e anos, ao longo dos tempos. As minhas flores cantaram e dançaram sob o azul de um céu que já não vejo existir. Vi nascer e morrer muitas outras árvores que, como eu, foram testemunhas da implacável destruição e devastação, do crime e do terror que sobre nós se abateu.

Antes tudo era verde, os pássaros cantavam pousados sobre os meus ramos que se erguia com orgulho, como grandes braços numa prece em direcção aos céus. O sol nascia por trás das montanhas e, como uma luz infinita, banhava as nossas folhas com reflexos de ouro. O rio murmurava segredos por entre a erva e muitos eram os animais que nele se saciavam. Quando o Inverno chegava, tudo se cobria de branco, e os meus ramos, já sem folhas, brilhavam cobertos de gelo, à luz de um sol prateado. O rio congelava, transformando-se no mais perfeito e silencioso dos espelhos. Mas logo surgia a Primavera, doce e suave, e tudo renascia de novo. Seguíamos uma ordem harmoniosa e os ciclos seguiam-se naturalmente. À noite sucedia o dia, e a seguir ao dia chegava a noite, calma e serena, com o seu céu salpicado de pequenos pontos brilhantes. A lua surgia onde antes o sol reinara. Ouvia-se o som misterioso do canto dos seres nocturnos e a canção da vida daqueles que caminhavam durante o dia. Tudo era correcto e livre. Seguíamos o nosso curso natural e éramos felizes.

Contudo, sem que desse conta, os tempos mudaram.

Um dia recebemos estranhas visitas e a poderosa e densa floresta abriu-lhes o coração, partilhando inocentemente os nossos segredos e mistérios. No princípio, os nossos visitantes seguiram as regras da paz e harmonia. Afinal, eram apenas mais uma espécie, por entre tantas outras. Mas não demorou muito para que os seus números aumentassem, e as regras começaram a ser infringidas. Autointitularam-se soberanos do mundo e fizeram da floresta o que queriam e desejavam. Destruíram, mataram, e o que em tempos fora um mar eterno de verde fulgurante, rapidamente se tornou numa pequena mata. O rio deixou de cantar, as suas águas cristalinas escureceram, o seu curso foi desviado e a vida acabou por o abandonar. O céu deixou de ser azul e ganhou uma tonalidade cinzenta. A noite, essa, deixou de ser tão negra e os seus salpicos brilhantes perderam a luz. A seguir surgiram estradas, fábricas, prédios, e a pequena mata passou a ser um jardim.

Da minha floresta nada restou, para além de mim. Colocaram uma cerca em volta do meu tronco, que dizem ser para me proteger, e aqui estou eu. As forças já me faltam. Já não tenho folhas para escrever o meu testemunho. Apenas me resta uma, pálida, engelhada e frágil. Os meus olhos deixaram de ver o sol brilhante e dourado. Já não sou forte nem viçosa, como me recordo de ter sido. As minhas únicas companhias são dois pardais, que quase asfixiam devido à poluição que contamina o ar. Mas em breve tudo terminará. E quem é que se importa? Durante anos e anos dei as minhas folhas ao vento, para que levasse as minhas súplicas para longe, mas quem é que as ouviu? Hoje dou a minha ultima folha e o meu último suspiro.

Olho agora para um céu outrora azul e recordo o cantar dos pássaros, o murmurar do rio, o sol dourado e a magia do vento por entre as minhas folhas. Este último sonho embalará o meu último alento de vida. Tudo era belo… mas já não é…

Adeus mundo. Adeus…


1996



1 comentários:

Anónimo disse...

Sofia...este texto está SIMPLESMENTE ESPECTACULAR e a tua escrita é SOBERBA E GENIAL!
NÃO PARES DE ESCREVER,OK?
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João Canais do Google+

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